Psicólogo / Psicanalista Clínico ICPB Nº 20220001

O enigma de feminilidade

Homens e mulheres, que idealmente sonham amar-se de modo igual, não tem o mesmo corpo e portanto não amam o corpo do outro da mesma forma... 

As mulheres, garantiu Freud, sofrem de inveja do pênis... E os homens, é sabido, têm medo do corpo das mulheres...

Pois é claro que Freud formulou um sentimento já generalizado nos homens, os quais, considerando-se superiores graças sobretudo à posse do cetro falo, não poderiam conceber que as mulheres não invejassem esse apêndice tão portentoso... 

"Ser mulher", disse Kierkegaard, "é algo tão estranho, tão confuso, tão complicado, que nenhum predicado consegue defini-lo, e os múltiplos predicados que gostaríamos de empregar seriam de tal modo contraditórios que só uma mulher poderia suportar" equivale a dizer que os homens vêem nas mulheres uma complexidade insuportável...

E dizia Freud: "Sobre o enigma da feminilidade os homens de todas as épocas quebraram a cabeça..."

O enigma de feminilidade é o seu corpo... Um corpo que menstrua, que se altera, que acompanha a lua, que gera e amamenta... Um corpo que dá prazer ao homem, mas que dá também lassidão, e no qual ele precisa entrar fisicamente sem ter conhecimento daquilo que abriga em seu interior... O corpo da mãe, gêmea da terra, é mistério da natureza...

Coisas demais, convenhamos... Contra esse excesso, o homem sempre reagiu misturando ao seu desejo uma sólida dose de pavor...

Pavor que está presente nos mitos relativos à impureza do sangue menstrual, acusado dos piores males...

Diz Plínio em sua História natural: "a mulher menstruada estraga as colheitas, devasta os jardins, mata os gemes, faz cair os frutos, mata as abelhas, se ela tocar o vinho ele se transforma em vinagre; o leite azeda..."

E o Levíticos adverte: "A mulher que tiver um fluxo de sangue em sua carne ficará durante sete dias em sua impureza... Quem tocar será impuro até a noite...

Toda cama sobre a qual ela deitar... todo objeto sobre o qual ela sentar será impuro... Quem tocar sua cama, lavar suas roupas, se lavará na água e será impuro até a noite."

Zoroastro mandava castigar as mulheres que durante a menstruação se aproximassem do fogo ou da água... E em certas tribos africanas as mulheres menstruadas não devem tocar a terra nem atravessar um raio de sol, só podem cozinhar para si mesmas. sem dar sua comida a ninguém, e devem destruir a vasilha na qual comeram para que não venha a trazer desgraça aquele que inadvertidamente a encontrar...

O pavor também acompanha a defloração... Em muitas culturas ela é praticada por uma outra mulher, às vezes com a ajuda de um instrumento, galho ou osso, a fim de que não haja nenhum contato não só com o perigoso hímen, mas com o perigosíssimo sangue que decorre de sua laceração... 

Isso nos remete à mais terrível das crenças em relação ao corpo sexual: o mito da vagina dentada... Só entre os índios norte-americanos foram recolhidas mais de 300 versões desse mito... Mas ele aparece também na mitologia clássica, e podem ser encontrada entre os povos do mundo inteiro...

Todas as variantes contam a mesma coisa: uma mulher, ou mulheres, voraz tem a vagina guarnecida de dentes, ela seduz os homens para que deitem com ela; os homens introduzem o pênis na vagina que imediatamente os devora...

Há mitos que que a vagina da mulher é substituída por cabeça de cão faminto que ela traz entre as pernas. Outros que não se trata propriamente de dentes, mas cobras, enguias ou até dragões que ela esconde na vagina e que devoram ou envenenam os homens...

No tratado pseudo-aristotélico "Secretum secretorum", divulgado na Europa no século XII, Aristóteles previne seu aluno Alexandre o Grande contra o perigo da Índia, que, alimentadas com veneno desde a infância, envenenariam o homem através de seus beijos e de seu sexo...

Medos e preconceitos em relação ao "mistério" da mulher não se esgotam nos mitos antigos e primitivos. Todos nós já ouvimos dizer que a mulher "com dor de cabeça" não pode fazer maionese, porque esta certamente desandaria (o preconceito contra a menstruação evitava que se lhe pronunciasse sequer o nome), e que não deve lavar a cabeça, nem tomar banho em água fria, sob perigo de ficar aleijada para sempre...

E a lista de das coisas que não se devem comer "naqueles dias" vai desde feijão até banana, incluindo uma série de alimentos ditos "reimosos". Até hoje, uma mulher estar menstruada parece um estado de exceção...

Se calcularmos quatro dias de menstruação por mês e 30 anos de vida reprodutiva, veremos que as mulheres passam cerca de quatro anos de sua vida menstruadas... O que, convenhamos é um bocado de tempo para uma exceção...

Quanto a vagina dentada, qualquer psicanalista ou psicólogo pode fornecer exemplos da modernidade do mito, tirados da sua prática diária de consultório...

 

Ronaldo de Mattos - Psicanalista Clinico