Psicanálise e Teologia seus encontros
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Ora, uma idéia muito comum é a de que estes dois campos (a psicanálise e a teologia) se opõem, especialmente sobre a questão da culpa. Por isso que quero me esforçar para elucidar este ponto.
O verdadeiro problema é saber se a psicanálise, por ela mesma, enfraquece o senso moral, o senso de culpa autêntica, ou se, ao contrário, ela o torna mais agudo.
A principal crítica que os teólogos lhe fazem é que a psicoanálise o destrói.
Mas o mesmo engano é encontrado também entre os psicanalistas. Um colega que se converteu à psicanálise escreveu-me: "Precisamos eliminar a culpa!"
Ora, não me parece que a psicanálise "elimina" a culpa. Ela não a elimina, ela a desloca.
Assim, por exemplo, um homem não tem mais vergonha de seu instinto sexual, mas tem vergonha de ter tido vergonha.
A primeira culpa é colocada sobre um tabu; a segunda é bem mais autêntica, pois ele coloca-a sobre a sinceridade Consigo mesmo. A culpa ainda está lá, mas não tem mais a mesma conotação.
A popularização da psicanálise contribuiu para o desmoronamento do moralismo burguês, no qual a geração mais antiga foi criada, e nós só podemos nos rejubilar como crentes, porque suscita-se assim uma justa inquietação bem própria para abrir os corações à mensagem da graça. "O homem moderno", escreve J. Lacroix, "está em constante posição de acusado".
A psicanálise desloca a tônica da culpa do nível formal do ato ao nível mais profundo de sua motivação. Mostrei no livro Technique et foi ("Técnica e fé"), o quanto este deslocamento de uma moral formal a uma moral profunda está de acordo com o espírito bíblico.
Esta noção das "motivações" opõe-se ao moralismo nas duas direções. Primeiro, porque uma ação boa pode ter motivos maus.
A prova encontra-se no que Paulo fala aos Filipenses sobre homens que anunciam a Cristo por motivos que não são puros (Fp 1:17). Mas é a idéia que tem importância muito maior que provas explícitas e ela encontra-se ao longo de toda a Bíblia, nas palavras dos profetas e do próprio Cristo. Assim, diz ele, por exemplo: "Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles..." (Mt 6:1).
Inversamente, uma ação considerada má pelo formalismo religioso pode ser justificada em razão de seu motivo. Assim, quando os fariseus reprovaram Jesus por ter curado uma mulher no sábado, dia em que a lei proibia todo trabalho, ele jus-tifica-se através do amor, o motivo de sua conduta: "Por que motivo não se devia livrar deste cativeiro em dia de sábado esta filha de Abraão, a quem Satanás trazia presa há dezoito anos?" (Lc 13:16).
Todo o Sermão do Monte (Mt 5-7), como já demonstrei, opera este deslocamento da culpa dos atos aparentes para os motivos secretos que os inspiram.
Da mesma forma, na discussão sobre carnes sacrificadas aos ídolos (1Co 8), Paulo opõe-se ardorosamente ao legalismo que penetrava na igreja de Corinto. Ele mostra que o que importa são os motivos que inspiram cada um em sua conduta.
Quando é o cuidado para não escandalizar um irmão que impede alguém de comer tais carnes, isso é bom. Mas quando é o medo de contaminar-se, no sentido formalista que este termo tinha para os judeus antigos, então é um mal.
Há nisso uma afirmação fundamental: o importante é a intenção. O antigo legalismo judaico conduzia a uma casuística meticulosa, fonte de angústia e de escrúpulos. Porque desde que os ritos sejam fixados nos seus menores detalhes, vive-se obcecado pelo inquietante medo de se ter falhado em algum ponto, enredando-se em verdadeiros impasses.
Cristo veio nos libertar destes legalismos, mas, ao mesmo tempo, ele projeta uma luz implacável no âmago secreto do ser humano. Ele situa a culpa não nos comportamentos aparentes, mas no coração dos homens. "O que sai da boca, vem do coração, e ê isso que contamina o homem. Porque do coração procedem maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias. São estas as coisas que contaminam o homem; mas o comer sem lavar as mãos, não o contamina" (Mt 15:18-20).
De outra feita lhes disse: "Vós, fariseus, limpais o exterior do copo e do prato; mas o vosso interior está cheio de rapina e perversidade" (Lc 11:39).
Assim ele desloca a culpa do plano formal, angustiante e estéril dos tabus para o plano profundo e fecundo das motivações do nosso comportamento.
A psicanálise opera um deslocamento semelhante. Ela nos liberta da angústia dos tabus, mas ela desmorona também a doce ilusão de que se pode viver escondido da culpa.
Então reconhecemos com a Bíblia a terrível universalidade do mal: "Não há justo, nem sequer um... todos se extraviaram, a uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer" (Rm 3:1.0, 12). "... o homem... bebe a iniqüidade como água" (Jó 15:16).
No mesmo livro de Jó há uma curiosa passagem que se refere às faltas que, conforme a opinião de Elifaz, Deus encontra mesmo em seus anjos:"...aos seus anjos atribui imperfeições" (Jó 4:18). Ninguém escapa à culpa, todos têm sede de salvação e de perdão.
Paul Tournier - Psiquiatra suíço, começou sua vida profissional como médico em Genebra em 1928. Sua preocupação com a medicina integral o levou à prática da psicoterapia.